Neurocientista conseguiu fazer com que ratos transmitissem
informações entre seus cérebros a milhares de quilômetros entre si, criando a
primeira interface cérebro-cérebro. É o passo inicial para criar, no futuro,
uma rede capaz de ligar as pessoas por meio do pensamento
Em 2011, no livro Muito Além do Nosso Eu: A Nova
Neurociência Que Une Cérebros e Máquinas e Como Ela Pode Mudar Nossas Vidas
(Ed. Cia. das Letras), o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis propõe o
conceito de brainet, uma avançada rede pela qual seria possível se comunicar
através de ondas cerebrais com outras pessoas, uma espécie de 'internet
cerebral'. Nesta quinta, ele anuncia o primeiro passo para que isso um dia se
torne realidade. Em sua pesquisa mais recente, sua equipe conseguiu ligar
eletronicamente os cérebros de dois ratos. Após terem microeletrodos instalados
em suas cabeças, os animais passaram a se comunicar por meio da transmissão dos
sinais elétricos produzidos por seus neurônios, e colaboraram para a resolução
de tarefas mesmo quando não estavam na presença um do outro. Desse modo, os
cientistas conseguiram criar, pela primeira vez, uma interface cérebro-cérebro.
O estudo, realizado na Universidade Duke, nos Estados Unidos, e no Instituto
Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS), foi
publicado na revista Scientific Reports.
Até agora, as pesquisas desenvolvidas por Miguel Nicolelis
se voltavam principalmente ao estudo de novas interfaces cérebro-máquina-cérebro.
Elas consistiam, basicamente, em captar a atividade elétrica no cérebro de um
animal e traduzi-la para comandos eletrônicos, que podiam ser lidos por
artefatos robóticos. O pesquisador havia conseguido, por exemplo, fazer um
macaco controlar uma mão virtual apenas com o seu pensamento. Segundo
Nicolelis, o desenvolvimento de uma interface cérebro-cérebro representa a
progressão lógica dessas pesquisas. "Em nossos laboratórios, nós buscamos
descobrir os limites do cérebro. Já o fizemos se comunicar com máquinas, com
avatares em computador e até com sensores de luz infravermelha. Desta vez, nós
tentamos descobrir se o cérebro é capaz de assimilar os sentidos de outro
corpo", disse Nicolelis em entrevista ao site de VEJA.
Para testar a hipótese, os pesquisadores realizaram uma
série de três experimentos em ratos. No primeiro, os animais foram treinados
para realizar uma tarefa simples: eles eram colocados em um compartimento de
frente para duas alavancas, e deveriam escolher qual delas pressionar de acordo
com uma luz que acendia sobre ela. Se escolhessem a correta, ganhavam um gole
de água como recompensa.
Depois que os animais aprenderam a realizar a tarefa, os
pesquisadores inseriram microeletrodos em seus cérebros, na região do cérebro
que processa as informações motoras (córtex motor), e os separam em dois
grupos: codificadores e decodificadores. Os primeiros teriam a atividade elétrica
de seu cérebro registrada durante a execução da tarefa e transmitida adiante.
Os segundos seriam treinados para receber e compreender essa informação,
implantada diretamente em seu córtex motor.
Os decodificadores foram colocados em um compartimento
parecido com o usado anteriormente, com duas alavancas, mas sem uma luz capaz
de guiá-los para a escolha correta — eles só contavam com as informações
transmitidas a seu cérebro para resolver a tarefa. Durante o treinamento,
quando a estimulação elétrica era criada pelos pesquisadores e não pelo outro
rato, os decodificadores conseguiram traduzir os sinais de forma correta em 78%
das vezes. Já durante o experimento, recebendo as informações diretamente do
cérebro do outro animal, eles pressionaram a alavanca certa em 70% das vezes. A
performance da nova interface cérebro-cérebro foi um pouco pior do que a
estimulação cerebral direta pois uma série de fatores afetava a clareza com que
os sinais cerebrais eram transmitidos a partir do primeiro rato, como sua
concentraçao na tarefa e coordenação de movimentos. Mesmo assim, os cientistas
haviam provado a viabilidade da nova tecnologia.
Segundo os pesquisadores, a comunicação entre os cérebros
não se deu apenas em um sentido, mas foi uma via de mão dupla. Como o rato
codificador só recebia uma recompensa completa se o outro realizasse a tarefa
de forma correta, houve o estabelecimento de uma colaboração comportamental
entre os animais. "O codificador não gostava quando o outro rato apertava
a alavanca errada — ele queria a recompensa. Por isso, na tentativa seguinte
ele mudava seu comportamento: prestava mais atenção na tarefa, usava movimentos
mais precisos e, assim, seus sinais cerebrais ficavam mais claros. O
comportamento de um animal influenciava o outro, eles estavam se
comunicando", diz Nicolelis.
Tato à distância – No segundo experimento, os pesquisadores
testaram a possibilidade de transmitir entre os cérebros dos animais não só
informações motoras, mas táteis. Eles treinaram os ratos para usar seus bigodes
para distinguir entre uma abertura estreita ou larga em sua jaula. Se fosse
estreita, os ratos tinham que colocar o nariz em um sensor ao lado esquerdo da
abertura. Se fosse larga, eles deveriam colocar o nariz no sensor ao lado
direito. Quando acertavam, eles eram recompensados com goles de água.
Depois de treinados, os animais foram novamente divididos
entre codificadores e decodificadores. Os decodificadores foram colocados em
uma jaula sem a abertura, e deviam interpretar os sinais recebidos em seu
cérebro para saber que sensor pressionar. Dessa vez, no entanto, os
pesquisadores instalaram os microeletrodos no córtex tátil de cada animal. O
sinal transmitido para o decodificador não dizia mais respeito à movimentação,
mas à percepção do bigode do outro rato. Após a realização dos experimentos, os
pesquisadores descobriram que o índice de sucesso na transmissão da informação
foi de 65%, maior do que seria esperado pelo simples acaso.
Ao analisar os neurônios dos ratos decodificadores, os
pesquisadores descobriram que eles ainda eram capazes de responder às próprias
sensações táteis, mas, ao mesmo tempo, tinham adquirido a capacidade de
perceber as sensações alheias. "O cérebro do rato começou a representar
não só os próprios bigodes, mas também os bigodes do outro animal. Nós criamos
a representação de um outro corpo em seu cérebro, o que foi totalmente
inesperado", diz Nicolelis.
Para testar os limites da transmissão cérebro-cérebro, os
pesquisadores replicaram a experiência com ratos separados por milhares de
quilômetros. Os codificadores foram colocados em compartimentos no Instituto
Internacional de Neurociências de Natal e os decodificadores na Universidade
Duke, em Durham, nos Estados Unidos. Para transmitir os sinais elétricos entre
os animais, foi usada uma simples conexão de internet. Mesmo sob essas
condições extremas, a comunicação foi considerada bem-sucedida. "Apesar de
os animais estarem em continentes diferentes, com a transmissão ruidosa
resultante e atrasos de sinal, eles ainda puderam se comunicar", diz
Miguel Pais Vieira, pesquisador da Universidade Duke e primeiro autor do
estudo. "Isso sugere que, no futuro, poderemos criar uma rede de cérebros
de animais distribuídos em vários locais diferentes."
Rede mundial de cérebros — Por enquanto, os pesquisadores
foram capazes de transmitir somente informações muito simples entre os
cérebros, envolvendo apenas algumas dezenas de neurônios. No entanto, Miguel
Nicolelis diz que, com o aumento da capacidade tecnológica, as trocas tendem a
ser cada vez mais complexas, podendo levar ao desenvolvimento de computadores
orgânicos. "Se pusermos mais animais interagindo dentro dessa rede,
podemos criar um sistema computacional formado por múltiplos cérebros, com uma
arquitetura orgânica."
Hoje, no entanto, a tecnologia está em seus primeiros passos
e deve levar décadas, ou até séculos, para que as previsões se confirmem. Por
enquanto, o campo da interface cérebro-cérebro está em pleno desenvolvimento
— Nicolelis, por exemplo, já testa a
técnica em macacos —, e as possibilidades abertas são inúmeras. "Essa comunicação
direta entre os cérebros é completamente inédita, em qualquer espécie. Ninguém
sabe como esse tipo de interface pode acontecer, que símbolos podem ser usados.
Nós estamos criando um novo tipo de comunicação, que ninguém sabe onde poderá
nos levar", diz.
Fonte: veja.abril.com.br
0 comentários:
Postar um comentário